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Etelvina já servia lá por casa fazia para mais de quarenta anos, uma vida. Do senhor, conhecia-lhe todos os gostos e manias, que algumas tinha sim senhores. Coisa de pouca monta mas a senhora (que Deus a tenha), bem que se queixava por vezes num lamento disfarçado. Ela, Etelvina, ouvia mas não guardava na memória as palavras quebradas da senhora. Enfim, já está na paz de Deus.
Reformado já… da tropa (ele dizia do exército mas para ela tudo era tropa), andara pelas Áfricas e por outras terras que ela não sabia o nome… não sabia e nem era coisa que lhe tirasse o sono.
Por vezes o Senhor, que no dia-a-dia andava por casa com os seus oitenta anos enfiados dentro de um pijama já comido pelo tempo de riscas que um dia tinham sido de um azul forte mas que agora estavam gastas na cor como o Senhor no corpo, a cismar na longa vida e na dor nos ossos, era convidado para ir às festas da Nação ou da Raça… lá coisas do governo. Nesses dias tinha de lhe preparar aquele fato da tropa cheio de coisas douradas umas ao lado das outras… o que ela mais gostava era das fitas coloridas; havia-as de todas as cores.
As condecorações pelos serviços prestados à Pátria, como o Senhor dizia. Nesses dias o Senhor empertigava-se. Peito feito, parecia que voltava a estar lá na tropa, e quando o carro preto o vinha buscar o motorista, um soldado, batia à porta e perguntava pelo Senhor General, parecia que lhe tinham tirado alguns anos ao bilhete de identidade. No regresso vinha com as horas de esforço bem marcadas no rosto… um chá quente e ajudava-o a tirar a farda, a vestir o pijama e a enfiar o chinelos (ou o que deles restava… que forreta também era). No outro dia trazia-lhe os jornais, como sempre fazia, quando ia buscar o pão e leite, e era vê-lo de olhos ávidos, como uma criança, percorrer as folhas até encontrar a fotografia da tribuna de honra onde sempre ficava ao lado dos senhores do governo e de outros tropas tão gastos como ele. Nestas alturas era com vaidade que apontava o dedo, deformado pela artrose, e lhe dizia ter sido um grande homem e um valente militar… destemido, e até condecorado por bravura.
Mas um dia as coisas mudaram e o jornal da manhã caiu-lhe mal… quero dizer, o que leu no jornal… Ficara branco como a cal e balbuciava… Etelvina vem lá o reviralho, vem lá o reviralho. Por um momento voltou a enfiar o nariz no jornal, mas rápido, numa voz suplicante mandou que fechasse todos as portadas de todas as janelas e trancasse a porta da entrada. Era a revolução, vinham lá os comunistas. Etelvina assim fez; na verdade contrariada… havia tão pouca coisa com que matar o tempo logo agora que estava alguma coisa a acontecer tinha de fechar tudo… ela bem ouvia as pessoas a gritar, liberdade, liberdade… a cantar… uma voz que falava como os feirantes naquelas traquitanas de aumentar a voz quando era para vender os cobertores… mas o que ela ouviu saído da traquitana foi: Fogo! Nossa Senhora nos acuda. Tiros.
Do Senhor nem um gemido lhe ouviu talvez porque se tenha escondido dentro do roupeiro do quarto onde guardava a farda… mas que ele ouviu os tiros ouviu, isso pode Etelvina garantir… Etelvina e as ceroulas que teve de esfregar. No branco tinham bem a marca da vergonha e do susto do Senhor.

António Patrício

ceroulas